"O Quarto da Criança, um Reflexo do seu Espaço Interno"
Com alguma frequência, mães de crianças entre os 7 e os 11 anos pedem-me ajuda porque os filhos não adormecem sozinhos. A mãe tem de se sentar/deitar ao seu lado até adormecer, e sempre que acorda à noite chama pelo pai ou pela mãe. Existem muitas teorias, crenças e falsas ideias sobre esta questão. Por essa razão, gostaria de partilhar algumas reflexões que me parecem importantes.
1. Entender a Situação
Cada criança, família e situação é única. E por essa razão, é fundamental primeiro entender, explorar e contextualizar. A idade da criança, por exemplo, faz toda a diferença. Por outro lado, não existem fórmulas mágicas, nem universais. É por essa razão, que antes de mais nada, é preciso responder a algumas perguntas.
Por exemplo, porque é que a mãe tem de se deitar com ele? O que acontece se não o fizer? Como é que ele reage? Chora? Fica triste? Zanga-se? Levanta-se? Apenas insiste? Não consegue adormecer? Alguma vez a criança dormiu sozinha? Se sim, quando é que começou a precisar de companhia? O quarto dos pais fica muito longe do da criança? Como seria se a mãe ou o pai, ao invés de se deitar com o filho, lhe fizesse apenas companhia durante algum tempo, sentada na cama, ou numa cadeira ao lado da cama? Os pais já conversaram com o filho acerca da situação? Se for o caso, quais são as razões que a criança dá para querer a sua presença ao adormecer e durante a noite?
É frequente responderem que o filho tem medo de "estar só". Aí, é importante perceber melhor o que é estar só. É estar habituado a estar sempre acompanhado? Tem medo? Se sim, do quê? Sente-se ansioso, triste ou angustiado?
Por fim, seria importante saber como a mãe ou o pai se sentem com esta situação? Preferem dormir ao lado do filho, ou na sua cama (ao lado do seu companheiro/a, se for o caso)? Já se sentaram os três e conversaram sobre o que cada um sente relativamente a esta questão, e como se poderão ajudar uns aos outros? O que é que cada elemento da família precisa?
2. A capacidade da criança dormir no seu quarto
A capacidade de dormir sozinho, envolve na pessoa (da criança ao adulto) uma série de recursos e competências que são fisiológicas numa fase inicial, e gradualmente, cada vez mais emocionais. Se considerarmos um bebé, que acaba de chegar ao mundo e que não tem em si ainda a capacidade de se ver e reconhecer como um ser individual e “separado” da sua mãe, e que, para além disso, necessita de mamar de duas em duas ou de três em três horas, faz-nos todo o sentido, pensar que o seu lugar será precisamente junto à mãe. Desta forma, sentir-se-á mais seguro, poderá interiorizar a ideia de que as suas necessidades têm resposta, e, em termos logísticos, dar mama à noite fica claramente mais fácil.
Mas a verdade é que o ser humano, pelo “bicho” complexo que é, vai evoluindo gradualmente da necessidade de cumprimento de necessidades básicas (sejam fisiológicas e/ou de afecto), e começa a desenvolver em si, uma estrutura psíquica, que ainda que em constante transformação, o irá acompanhar ao longo de toda a sua vida. A qualidade desta mesma estrutura, irá determinar a forma como vai viver, fazer as suas escolhas e sentir-se, ao longo de todo o caminho. Pois bem, cabe aos pais, estarem atentos a este processo evolutivo, e é aqui que entra a questão do dormir no seu próprio quarto e da capacidade de “estar só”.
Importa dizer que dormir no seu próprio quarto e dormir sozinho, são coisas diferentes. Veja-se o caso de crianças que têm irmãos mais velhos e nunca chegam a dormir efectivamente sozinhas. Isso não é um problema. A grande questão, é que, se numa fase inicial faz sentido o bebé estar junto à mãe, gradualmente, é importante que sinta que pode afastar-se dela e retornar a ela, sem danos para si mesmo, nem para a mãe. Isto, permite-lhe desenvolver o sentido de existência “dos objectos”, para além da sua presença física. Onde os vai encontrar? Dentro de si. Dentro da tal estrutura psíquica. Com o desenvolvimento da capacidade de guardarmos pessoas (e não só) “dentro de nós”, aprendemos a sentir-nos mais seguros. É isso que permite à criança ficar na escola durante o dia, sem se desestruturar, permite-lhe pensar em si mesma como um ser que poderá estar longe, estando muito perto. Aqui, eu voltaria a perguntar: o que é estar só?
Pense no adulto, que podendo estar a dormir na cama com outra pessoa, pode igualmente sentir-se profundamente só, e estando a dormir sozinho num quarto, pode sentir-se absolutamente acompanhado, seguro e amado. O verdadeiro sentido de proximidade é vivido dentro de nós. Está na capacidade de confiar que as pessoas significativas estão cá para nós, no sentido lato da expressão e não apenas no sentido físico.
A par com esta competência profundamente estruturante para o Ser Humano, existe outro aspecto que entra em acção nestas situações. O sentimento de segurança interna. O que há de tão ameaçador na vida ou neste mundo, que leve a que a criança não possa dormir num quarto (provavelmente separada do quarto dos pais apenas por uma parede), sozinha? A resposta é nada. É isso que temos que sentir, e que temos que passar aos nossos filhos.
Mas a questão é que os pais vivem com os seus próprios medos (muitas vezes inconscientes) de que poderão perder os seus filhos, ou de que este mundo é efectivamente uma ameaça. Quando confrontados com a fase normal e saudável dos medos, pesadelos e terrores nocturnos da criança, são os pais quem mais se assusta. Depois, perante as suas inseguranças, enviam mensagens confusas aos seus filhos. Alguns exemplos são os pais que abrem os armários para mostrar que não está lá nenhum monstro (se eles não existem, porquê que é preciso espreitar?), outros dizem aos filhos para rezar muito quando chegam os medos (para estarem protegidos, do quê?), ou dizem que mandaram embora o que quer que fosse que estivesse no quarto (então mas se não existe...). Estas mensagens são contraditórias. Tanto quanto ficar a dormir com o seu filho. Está a dizer-lhe indirectamente que ele precisa que fique ali com ele, para que possa estar protegido (e consiga dormir em paz) - “Se a minha mãe fica aqui, é certamente porque eu preciso disso para estar bem”.
Dormir sozinho põe ainda à prova e ajuda a desenvolver, uma terceira competência que me parece digna de ser mencionada aqui: a capacidade da criança gerir as emoções (e os seus fantasmas pessoais). A noite é óptima para lhe ensinar isso mesmo. Quando dizemos a um filho -“o teu lugar não é na minha cama e o meu lugar não é na tua cama”, estamos a permitir-lhe viver algumas das frustrações que fazem parte da vida e que ele vai ter que aprender a gerir. Quando dizemos a um filho, “eu percebo e é normal teres medos, vou ajudar-te no que me for possível, mas sei que boa parte da conquista vai ser tua”, estamos a ajudá-lo a gerir os seus próprios medos, e a entender que se a mãe não fica assustada e o deixa lidar com eles, então não deverão ser assim tão "gigantescos”. Quando diz ao seu filho – “eu consigo estar fisicamente separa de ti, continuando a amar-te da mesma forma”, está a dizer-lhe que o amor é constante, genuíno e seguro.
Sempre que se aborda este tema, normalmente os pais focam a questão da autonomia, como sendo um ponto ou uma preocupação central. Pensam, na maioria das vezes, em autonomia funcional. Esquecem, no entanto, que a verdadeira autonomia, é a autonomia emocional. A capacidade de enfrentar desafios sem se desestruturar, a capacidade de ser ver como um ser individual e único (que não se funde ou baralha com os outros), capaz de construir o seu próprio caminho, encontrar as suas próprias soluções, ainda que, possa escolher fazer esse caminho acompanhado (e escolher, é muito diferente de precisar). Ou seja, escolher aconselhar-se com os pais sempre que tem um problema, é diferente e muito mais libertador do que acreditar que precisa da ajuda dos pais sempre que enfrenta um desafio.
3. Ajudar o seu filho/a a dormir no seu próprio quarto
Para ajudar a criança a dormir no seu próprio quarto, aceitando que os pais façam o mesmo, é fundamental que possam todos conversar abertamente sobre esse tema, sem acusações, recriminações ou castigos. Os pais devem falar sobre o que cada um pensa e sente sobre a situação. Depois, perguntar ao filho o que pensa, sente, e acha que consegue fazer.
É igualmente importante que sejam claros sobre a organização familiar, e a vivência do espaço da casa, definindo as regras e explicando o que as coisas são. “Eu e o pai somos um casal e, por isso, dormimos na mesma cama. Um dia, poderás querer o mesmo para ti”, “tu és nosso filho, e por isso, preparámos o teu quarto, um espaço teu, e que fica junto ao nosso quarto”. Para o seu filho, o respeito pelo quarto torna-se ainda mais importante na adolescência, altura em que os pais não deverão entrar sem bater, por exemplo.
Porque me perguntam muitas vezes, devo dizer que quanto a mim, deixar chorar não é uma opção. Na minha opinião, nunca foi. Fazer escolhas claras, ser coerente e determinada/o não é deixar de ser sensível às necessidades do seu filho/a. O que acontece às vezes, é confundirmos o que a criança pede, com o que ela realmente precisa, e o que ela pensa que não consegue fazer, com uma verdadeira incapacidade. Ora, a criança não sabe até onde consegue ir, até chegar lá. Precisa por isso, que alguém acredite por ela numa fase inicial, para que ela possa começar a acreditar sozinha, numa fase mais adiantada. Todo este processo de conquista, pode e deve ser feito com o seu acompanhamento. Precisa de alguém ao seu lado para adormecer? Não se deite com ela. Esteja ao lado dela. Tem pesadelos, acorda e chama os pais? Vá lá, conforte-a, diga-lhe que virá sempre que ela precisar, mas que, uma vez que esteja mais calma ou tenha adormecido, voltará para a sua própria cama. Isto é muito cansativo no início, mas gradualmente, ela deixará de sentir necessidade de chamar os pais (estará a desenvolver um sentimento de segurança).
Outra estratégia importante é, se ambos os pais fizerem parte do agregado, que alternem “os turnos”. Um dia fica para um, no outro dia, é o outro. Tenha em atenção que são os pais que decidem, e se organizam, e não o seu filho. Ou seja, hoje será o pai porque eu tenho que fazer umas coisas, amanhã serei eu porque o pai vai estar mais ocupado, etc. Uma das coisas que mantém muitas vezes, este tipo de comportamento, é uma falsa sensação de controlo sobre a mãe e sobre a relação dos pais. A criança fica refém dessa necessidade, e acredita que só pode sentir-se segura se controlar as pessoas à sua volta. Imagine o que é crescer com este sentimento!
Organize e crie uma rotina “amiga” do sono. Tente que o horário durante a semana seja estável, sendo que podem fazer do fim de semana, a exceção. Actividades mais calmas e relaxantes perto da hora de dormir são benéficas. Por outro lado, a hora de ir para a cama, pode ser um bom momento para partilhas com o seu filho, conversar calmamente sobre os seus sentires, planos para o dia seguinte, etc. Se houver medos, ou ansiedades, falar sobre elas é benéfico. O papel dos pais é estar ali, ouvir, entender, conter. Não minimize, desvalorize ou tente resolver as questões à sua maneira. Esteja apenas lá, e diga-lhe que entende que aquilo esteja a ser difícil, abrace-o sempre que for preciso, e diga-lhe que confia que ele vai conseguir lidar com a situação.
Para terminar, é fundamental que os pais saibam que é seguro deixar os seus filhos crescer. Não os estão a perder. A relação está apenas a transformar-se e a criança a fazer um caminho saudável.
Como nota final, deixo o alerta de que se estas estratégias não forem suficientes, ou se houver outros sintomas associados (alimentação, auto-estima, comportamento, aprendizagem, etc.), então não deve hesitar em procurar a ajuda de um psicólogo. A questão pode ser mais profunda e é fundamental que não deixe o seu filho crescer logo à partida com estas dificuldades.
Ana Guilhas,
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