quinta-feira, 11 de setembro de 2014

"Por favor, morde-me! " - Compreender e lidar com as dentadas na creche


A propósito de uma questão colocada no colégio da minha filha, deixo-vos aqui uma pequena reflexão sobre as dentadas em contexto de creche. Antes de mais, penso que posso dizer sem errar, que é consensual para os técnicos de saúde mental e acredito que também entre os pediatras, que as dentadas e os aranhões na escola são uma fase perfeitamente normal (e eu acrescentaria desejável) no desenvolvimento infantil. Acontece, nestes padrões de normalidade, mais ou menos até aos 3 anos (mas a fase dos 2 anos é habitualmente onde se manifesta com mais frequência).

Porque é que acontece?
Entre os 12 e os 24 meses, a criança encontra-se em plena fase de omnipotência, acreditando que é o centro do mundo. O mais importante da vida, é a gratificação dos seus desejos e necessidades físicas e psicológicas. Aliado à fase de descoberta, curiosidade e enorme aprendizagem em que se encontra, partilhar os objectos de interesse torna-se uma tarefa quase impossível. Por outro lado, os estados emocionais são para ela ainda um mistério. E ainda não consegue expressar zanga e frustração sem ser através de intensas birras ou de comportamentos que aos nossos olhos parecem muito agressivos. Todos estes factores combinados, fazem da dentada, dos empurrões e/ou aranhões a forma possível da criança se expressar em determinados momentos. Se dói a quem recebe a dentada? Dói. Mas o objectivo da criança não é necessariamente atingir o outro mas apenas libertar ou manifestar o que está em si. Frequentemente, quando se apercebe que provocou dor, a criança começa a chorar assustada com o seu próprio comportamento.
O adulto que assiste a uma dentada ou empurrão ou qualquer outra forma mais agressiva de expressão (e estamos a falar naturalmente de crianças até aos 3 anos) tende a pensar que a criança morde com a intenção de magoar, mas essa intenção, para já, não existe. Percebendo o mecanismo, é mais fácil para um pai de uma criança mordida ou para todos os adultos que se encontram por perto, reagir de forma mais tolerante à situação. Assim, um momento que pode tornar-se de grande tensão, revela-se apenas um  momento de grande aprendizagem para todos.

Uma questão de expressão
Em "O Grande Livro dos Medos e das Birras", o pediatra Mário Cordeiro explica as dificuldades de expressão na criança e as suas consequências no comportamento referindo que
"a linguagem receptiva média de uma criança com 2 anos é de milhares de palavras, enquanto a linguagem expressiva é de apenas 150 a 200 palavras. Só este dado causaria uma enorme frustração (um pouco à semelhança dos adultos que perdem a fala por qualquer razão). Tentar responder a uma frase complexa, que é entendida pelo bebé, mas não  tendo vocabulário suficiente ou imaginação gramatical para poder expressar os sentimentos ou verbalizar o que quer dizer, é muito traumatizante. E, falhando a linguagem verbal, só resta a linguagem corporal... agravado pelo desatino que existe pela nova frustração de não poder expressar verbalmente o que desejaria dizer." (Mário Cordeiro, 2013)
Vamos imaginar a seguinte situação, uma criança está a brincar com um carrinho... aquele carrinho novo do colégio que tinha estado nas mãos de outro menino e só agora teve a oportunidade de agarrar. Começa a estudar e a experimentar o brinquedo e simultâneamente começa a sentir o seu entusiasmo crescer com a descoberta e com a experimentação. Agora, aproxima-se outra criança também ela interessada no brinquedo (que ainda por cima é novo!) e começa a tentar tirar-lho (porque não? Encontra-se em plena fase de "quero, posso e mando", certo?). Perante essa situação, poderíamos imaginar um diálogo entre as duas crianças:
- Este brinquedo é muito giro, fiquei muito tempo à espera de o ter. Quero brincar com ele mais um bocadinho. Estou mesmo na fase em que estou a descobrir as coisas todas que dá para fazer com ele. Ainda por cima, ainda não aprendi a partilhar. Se mo tentares tirares, vou ficar muito zangada.
- Eu também quero experimentar esse brinquedo. Parece giro e divertido. Principalmente porque te vejo tão feliz com ele. Ainda não aprendi a esperar e, quando tenho que esperar por alguma coisa, fico muito irritado. Vou ficar zangado se não mo deixares agarrar.
Qual é o diálogo possível? Uma criança diz - Não!. A outra insiste - Quero!. Resultado? Uns empurrões, uma dentada e choro! Tudo em poucos minutos (às vezes menos). Nesta fase, o uso de força física substitui a comunicação oral, que ainda não consegue acompanhar o raciocínio e as emoções.

E da parte dos adultos?
Depois da mordida, é habitual ver ambas as crianças a olharem à volta como que a solicitar a intervenção do adulto. E, a forma como os adultos que estão por perto irão reagir, vai ser um factor chave para a aprendizagem retirada do momento. Para isso, é preciso reconhecer-lhe um o potencial de aprendizagem.
Antes de mais, é fundamental explicar que aquele comportamento não é adequado e, por isso, quem mordeu deverá naturalmente ouvir um firme e compreensivo NÃO. Por outro lado, será importante assumir o papel de "tradutor" da linguagem corporal, para ambas as criança. Assim, não tendo ainda capacidade para se exprimir nem compreender totalmente os seus estados emocionais, vão interiorizando um modelo alternativo.
Finalmente, pode ser importante explicar as posições, as consequências sobre cada um e as alternativas ao comportamento (de preferência explicando porque são  melhores).
Um exemplo seria - Não se morde! (introduzimos o interdito). Ficaste zangado porque querias continuar a brincar (damos nome ao estado emocional). Mas não se pode morder porque quando mordemos fazemos um dói dói ao amigo (apresentamos um efeito que não era o pretendido). O teu amigo também queria brincar com o mesmo brinquedo e não conseguiu esperar que acabasses (sem validar, explicamos o outro lado). Porque não tentam brincar juntos? (uma alternativa ao conflito).
Claro que a criança não deixa automaticamente de morder (é um processo). E claro que não começa imediatamente a exprimir as emoções. E claro que não começa logo a brincar em conjunto e a partilhar. Nesta fase, trata-se apenas de a ajudar a interiorizar e olhar para a situação de outra forma. Começamos a falar com um bebé muito antes dele ser capaz de nos responder ou reproduzir o nosso discurso, não é? Aqui trata-se de fazer o mesmo.
Fundamental será evitar comentários como "és mau", "não brinques mais com ele", etc... Para além de não resolver nada, dá à situação uma carga de culpa, intencionalidade e negativismo que não existe à partida, mas que pode passar a fazer parte das situações seguintes. Desta forma, uma reacção inofensiva e que à partida é normal, pode tornar-se aí sim, um problema.
Se for uma situação repetida e com uma criança mais crescida (2 a 3 anos) então afastá-la do grupo por uns minutos (2 a 5 minutos) pode ser uma forma de a ajudar a perceber que aquele comportamento não é aceitável. Se for um comportamento persistente e que ultrapasse a vertente de expressão, então talvez tenha chegado o momento dos pais e da equipa conversarem.

Impedir as mordidas?
Acreditar que é possível por parte da equipa pedagógica que acompanha o grupo, impedir que isso aconteça é ilusório e muito distante da realidade da interacção infantil. Quando duas crianças pequeninas brincam em conjunto (o que, em certas fases do desenvolvimento, só por si já é uma proeza), uma interacção pacífica muda de "figura" numa fracção de segundos e sem que por vezes seja possível para o adulto prever. Ainda bem que assim o é. Imaginem este mundo, se impedíssemos o Ser Humano de experimentar os seus limites e os do outro, quando ainda é pequeno e sem que isso represente danos de maior para nenhum das partes!
Será assim tão desejável impedir completamente as mordidas, empurrões e aranhões? Imagine, por exemplo, o que é para uma criança confrontar-se com a agressividade dos outros apenas aos 6 anos. Aí, possivelmente já sob a forma de agressão mais elaborada e organizada. Este "ataque feroz" pode passar por um "não gosto de ti", "não quero ser teu amigo", "és gorda ou feia", etc. Uma criança que nunca foi "atacada" não saberia que aquelas acções reflectem muito mais o outro e aquilo que ele está a sentir (zanga, frustração, medo, tristeza) do que a definem a ela. Não tendo levado "dentadas" quando podia, mais tarde, fica a mercê de palavras e comportamentos (potencialmente) devoradores da sua auto-estima. Mais ainda, se crescer sem "morder" ninguém, poderia tardiamente descobrir em si mesma uma agressividade com a qual ela não aprendeu a lidar. Essa agressividade desconhecida pode ser também demasiado pesada para ela carregar. Por um lado, é importante que a criança esteja preparada para receber um ataque mantendo a sua auto-estima intacta e, por outro, é fundamental que fique a conhecer os seus limites e aprenda a gerir a sua própria agressividade. Claro que os pais preferem, em certa medida, negar a existência de agressividade nos seus filhos. Mas não esqueçamos que a agressividade tem muitas formas de se manifestar e piores ainda de se não manifestar.

Importante
É frequente nesta fase as crianças adoptarem comportamentos de desafio, quase que como dizendo "por favor morde-me, porque eu não sei ainda até onde posso ir, e também não sei até onde tu podes ir". A saúde leva-os a querer aprender a vida. Isso é tão bom! Assim tenham os adultos a capacidade de entender estas crises, pelo potencial de aprendizagem que trazem à criança.
E ambos aprendem que por vezes, este mundo dói, e que, por vezes, fazemos doer o mundo. É por essa razão que, enquanto podemos, o melhor é aprender a defender-mo-nos dos outros e de nós mesmos. O nosso presente e o nosso futuro agradecem!

4 comentários:

  1. Boa tarde.
    Sou educadora numa sala e tenho uma criança que fez 2 anos à um mês atrás. Praticamente desde o início do ano letivo que morde nos colegas, várias vezes e em várias partes do corpo. Aparentemente por vezes vê-se incomodado com algumas situações como por exemplo alguém tropeçar em cima dele e o seu comportamento é logo o morder. Noutras vezes nem é preciso fazerem nada, como já aconteceu, estar só a brincar com um colega e decidir morder. Já falei com os pais algumas vezes que dizem que em casa não é nada assim, é bastante carinhoso e não compreendem como ele é assim. Já tenho recebido várias queixas de outros pais porque é algo constante. Em sala nem sempre conseguimos evitar, acontece muitas vezes e em questões de segundos. Para além disso esta criança fica frustrada e um pouco irritada com várias situações aparentemente simples. Não queremos pôr a criança de parte e já tentámos várias estratégias mas nada parece resultar. Não sei o que fazer mais, precisava de uns conselhos...

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    1. Boa tarde, grata pelo seu comentário.
      Para melhor lhe responder à questão precisaria de mais algumas informações, como perceber se a criança entrou recentemente para a creche (o que poderia ajudar a explicar o comportamento com o processo de adaptação e aceitação dos pares, da perda de exclusividade, etc.). Mas de toda a forma, o ideal será sempre atribuir palavras e sentimentos onde há acção. A criança morde (que é a acção) agindo pelo que sente sem conseguir ainda processar a emoção de outra forma. Neste caso, ensinar a criança a entender e focar-se no que está a sentir, mais do que no agir, ajuda. No entanto, leva algum tempo e requer paciência e atenção. A solução não passaria por isolar a criança, mas sim por estar atento e antecipar situações em que ele comece a ficar mais ansioso ou frustrado. Nesses momentos, seria adequado que um adulto se aproximasse e traduzisse o que a criança está a sentir com algo do género "vejo que estás a ficar zangado porque queres o brinquedo que está com o x, entendo. Mas olha, podemos ir brincar com o outro carrinho que está ali (ou podes esperar um bocadinho que o x já se empresta)". A ideia é antecipar a acção, acolhê-la (aceitando-a como válida e natural para a criança), traduzir por palavras para ajudar a criar pensamento, e apresentar uma solução ou alternativa. Gradualmente a criança aprenderá a usar esse mecanismo ele mesmo, o que vai ajudar a reduzir a tensão interna.
      Normalmente este comportamento reduz com o desenvolvimento da comunicação (aprender a pedir, expressar-se, etc. ) e com o aprender a gerir a frustração. São duas das grandes aprendizagens da idade em que a criança se encontra.
      No entanto, se as mordidas forem mesmo muito frequentes e existirem outros comportamentos que vos estejam a preocupar, pode haver uma causa que vá para além da fase de desenvolvimento em que se encontra. Aí, a minha recomendação será para que a criança e a situação seja avaliada por um psicólogo.
      Relativamente aos pais, será fundamental ajudá-los a todos (pais da criança que morde e pais das crianças mordidas) a entender o que se passa, e que enquanto equipa estão atentos e tudo farão para ajudar todos a ultrapassar a situação. É preciso entender que o comportamento pode levar algum tempo a desaparecer. Bom trabalho e que tudo corra pelo melhor.

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    2. Obrigada pela sua resposta.
      Pois, esta criança não está em período de adaptação. Há 1 ano que está em creche. E tem vindo a piorar os seus comportamentos.. Já diz muitas palavras mas pelo que vou percebendo é mais numa de repetir e não de se expressar. Até sabe o nome de objetos que vê mas no entanto por vezes parece não conseguir compreender o que lhe é dito ou expressar-se.
      A situação preocupa-me um pouco porque já é assim há 1 ano. Ainda hoje por exemplo, "salvei" 5 crianças de serem mordidas num só dia. Em algumas vezes é visível que é por frustração, mas noutras não parece existir uma causa provável. Por vezes está apenas a brincar e se outra criança lhe toca tem esse instinto, ou então se estamos a conversar em grupo no tapete e sem outra criança lhe fazer nada, morde-lhe. Também já verifiquei que, embora seja raro, a criança por vezes morde-se mas de uma forma muito leve, parecendo que sente essa necessidade, de morder. Além disto, a criança tem alguma dificuldade em aceitar o não, por vezes dá alguns gritos e também tem vindo a bater mais nos colegas. Também já pensei num psicólogo, mas se a criança não se expressa, será possível através de um psicólogo chegar a alguma conclusão?

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    3. Olá. O trabalho de um psicólogo com uma criança é muito particular e pode começar desde o nascimento. Independentemente da idade, aconselho sim uma avaliação com um psicólogo. Inicialmente a abordagem será feita com os pais, e depois, de acordo com a situação, os mesmos serão aconselhados relativamente à abordagem recomendada. Pode passar por intervenção com os pais, só com a criança ou em conjunto. Perante as dúvidas que coloca, sem dúvida que abordaria os pais no sentido de se equacionar uma avaliação psicológica. Abraço,

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