Conhece certamente a expressão popular “com a dor dos outros, posso eu
bem!”. Embora possa ter várias linhas de interpretação, a verdade é que ela
pode ajudar-nos também a pensar sobre uma realidade tão assustadora quanto
real: nem toda a gente consegue sentir para além de si mesmo. Jovens que
espancam e aterrorizam outros jovens, adolescente que tortura o cão (e
orgulhosamente publica na Internet), 30 homens que violam uma jovem de 16 anos,
e por aí adiante. Parece ir em crescendo, mostrando que o Ser Humano consegue
sempre mais um bocadinho de horror a cada passo. O mais fácil seria pensar que
se tratam de casos mais ou menos pontuais, ou circunscritos a determinadas
realidades, e originados na doença mental, como é o caso da sociopatia, as
estruturas de personalidade perversas, ou outras formas de patologia. Mas não
podemos ficar-nos por esta análise. Onde fica a intervenção? Como são tratados
estes casos para que os horrores não se voltem a repetir? O que é feito a
título de prevenção para evitar que o “comum mortal” esteja à mercê do
principal predador dos humanos, o próprio Ser Humano? Se grande parte da
resposta é, por um lado, institucional, por outro, não podemos esquecer que
directa ou indirectamente, somos todos participantes.
Como é que habitualmente reagimos? Assustamo-nos por uns dias,
indignamo-nos e ditamos “sentenças” como “era torturá-los a todos”, “era
matá-los aos poucos”, “era fazer-lhes igual”, etc. Depois, voltamos à nossa
vida “normal”, à espera de ficar indignados com outros tantos horrores que
venham a ser noticiados mais tarde. E cada palavra de revolta faz-nos sentir
envolvidos, activos e mais humanos. Mas, contas feitas, tudo não passa de um
folclore inútil que na realidade nada muda.
Não há volta a dar: a responsabilidade pelo tipo de mundo em que vivemos é
de todos nós! A indiferença perante o sofrimento alheio não é exclusiva de
pessoas com estruturas de personalidade patológica ou pessoas profundamente
adoecidas. Demasiadas vezes, para (sobre)vivermos num mundo de contrastes e
ainda com tanta dor, nos defendemos do envolvimento, em nome da nossa própria
sobrevivência psicológica, através de um distanciamento artificial. Uma espécie
de “não vejo, ou não dói tanto, porque não aconteceu no meu quintal”.
A verdade é que se muitos dos horrores, que nos chocam nas notícias, são
protagonizados por pessoas perturbadas e/ou profundamente doentes, existe toda
uma responsabilidade a atribuir à cultura, aos hábitos, às mentalidades de quem
faz parte do contexto em que essas situações, que mais parecem “filmes de
terror”, se desenrolam. Ainda que não tenhamos sempre consciência disso, não
intervir perante muitas das coisas que vemos no nosso dia-a-dia, é autorizar
que, mais tarde, aconteçam coisas que não queremos ver. Lamentavelmente, também
somos culpados quando deixamos que em nós se enraíze o sentimento de “não vale
a pena fazer nada”. Provavelmente umas das expressões mais destrutivas do poder
Humano, o poder de intervir na “dor do outro”.
Originalmente publicado em "Notícias de Cá e de Lá" nº 41 de 30 de Junho 2016
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